Do Carnaval como experiência criativa
Peço, caros leitores, que contenham um pouco o provável ceticismo depois do título deste artigo. Dizem que o ano só começa depois do Carnaval, assim antes que o mercado resolva se mexer, será que dá tempo de pelo menos tratar do tema carnavalesco? Foi o que me propus fazer. Com alguma pretensão, que tal se pudéssemos encontrar correlações entre o carnaval e o processo criativo, por exemplo? Creio que haverá leitores dispostos a, mesmo na festa ou feriadão, se interessarem pelo assunto – além de outros -, de modo a ir além do tema um pouco inusitado e investir um tempo em leituras no LinkedIn.
Do ponto de vista de pesquisa, não tenho como oferecer grandes novidades sobre o Carnaval, especialmente no Brasil, um País – dizem por aí – por si só com exacerbadas tendências carnavalescas. Além disso, tudo o que você quiser saber sobre este gigantesco espetáculo terrestre está à disposição através de uma boa busca no Google e hoje é possível também acompanhar tudo à distância, embora nada substitua estar no meio do acontecimento. No caso do Rio, a luz chapada é igual na TV ou vista no desfile, mas o som ao vivo, tanto lá quanto em Salvador, pode trazer-nos a outra dimensão. Boa música – nem todas – e mau (dependendo do ponto de vista) comportamento – quase sempre.
Embora um convite para um camarote ainda viesse em boa hora, acredito já haver esgotado a energia necessária para desfilar em uma escola e ir atrás dos trios – sim, uma vez em um mesmo Carnaval fui ao Rio e a Salvador! Sair em blocos, pular frevo, dançar marchinhas, seguir bandas ou ir para o salão já poderiam ser atribuídas a coisas da mocidade, mesmo que o comichão festeiro continue vivo.
A tese aqui é que, sim, o Carnaval é um alegre e divertido evento, mas não apenas isso. Se você pertence hoje ao imenso grupo de pessoas que se transformou em (tele)espectador, ou nunca mergulhou de corpo e alma na festa e então o faz, em lugares como Salvador, Olinda ou Ouro Preto, enfrentando o calor senegalês, a umidade vaporosa de suores, gritos, cantos e encantos febris, você passou no teste e está apto a vivenciar o que muitos foliões descrevem como “essa p* aqui não devia acabar”, ou seja, você não precisa de desculpa nem de lugar certo para cair na folia.
A princípio, ninguém aguenta mais do que os meros dois meses de carnaval de Salvador, mas a frase dos foliões – aqueles que, na terça gorda já começam a pensar no carnaval do ano que vem – é verdadeira, por mais que essa verdade exija realmente estar dentro do evento. Assim, gostaria de explorar as características de atitude e comportamento que distinguem o estado – não necessariamente etílico – do indivíduo brincalhão que resolve aproveitar a folia, a partir da perspectiva de quem vê de fora o contexto dessa experiência.
O Carnaval existe em termos arquetípicos desde sempre. Sim, vejam as raízes históricas e reminiscências arcaicas! Eu pesquisei e achei análises incríveis, inclusive jungianas! A desordem é permitida, as convenções são alteradas, desmistificam-se e se expõem contradições. Ops, há uma contradição aqui, se pensarmos na extremada organização dos desfiles nos sambódromos e, pasmem, nos circuitos soteropolitanos, contrariando toda a aparência de caos, mas para a abordagem que desejo trazer, foquemos no indivíduo.
O que nos interessa aqui é um tipo particular de experiência; podemos chamá-la de atitude divergente, nada a ver com o filme, mas com a física ótica, ou seja, o tipo de lente na qual a luz que incide é refratada e toma direções que divergem a partir de um único ponto. Neste sentido, na fase divergente do pensar criativo se busca expandir, gerar muitas possibilidades. Somente para completar o raciocínio, na fase seguinte, a convergente, se busca avaliar, selecionar e aproveitar o material gerado na primeira. É nessa alternância de fases que se baseia o pensar criativo. Na fase divergente, se quer quantidade; na convergente, busca-se qualidade.
No Carnaval, a partir da imaginação, liberta-se o lirismo, o espírito de revolta e de regozijo. As regras são mínimas em um espaço especial, onde todas as diferenças se encontram, deixando de lado convenções hierarquizadas e repressoras, uma espécie de liberdade permitida. Todos – ok, quase todos – estão ali para brincar, unir-se, suspendendo a individualidade. As fantasias criam um campo social de encontro. Neste parágrafo, daria para substituir a palavra Carnaval por Pensar Divergente, não é mesmo?
A propósito, um dos termos aplicados ao Carnaval é folia, do francês “folie”, cujo significado é loucura, êxtase. Análises mais profundas dizem que há um aspecto dionisíaco na experiência, ligado ao princípio da vida, da espontaneidade e da energia. Deste modo, poderíamos também lembrar de palavras como irreverência, improviso, jogo, confraternização, imaginação, vale tudo e outras, que novamente nos remetem às atitudes da divergência: adiar julgamentos, aceitar tudo o que vier, pegar carona na ideia dos outros, combinar, acrescentar, manipular para gerar novas opções.
Obviamente, não quero dizer aqui que liberar o cérebro de inibições nos fará criativos. Em “Serious Creativity”, De Bono já nos alertava sobre isto. O título aparentemente contraditório do livro aponta que criatividade não significa estar livre para bagunçar, na esperança de que alguma ideia nova apareça. Para criar, há método. Por outro lado, é verdade que para sermos criativos, precisamos estar livres de restrições, mas tal liberdade será mais efetiva através do uso de certas técnicas nos momentos certos, como o uso das fases divergente e convergente no processo de criação.
Dentre as muitas afirmações de Einstein que se tornaram quase que adágios populares está:
A lógica o levará de A a B. A imaginação o levará a qualquer lugar.
Ô abre-alas que eu quero passar!
Bom Carnaval a todos.
[Artigo publicado originalmente no LinkedIn, em 03/02/16, ligeiramente editado aqui].
©Gilvan Azevedo