Isto é Água e a Escolha do que Pensar

PeixinhosNeste curto vídeo: Isto é Água e a Escolha do Pensar, falo um pouco sobre o escritor David Foster Wallace e o famoso texto dele: “Isto é Água”.

Em alguns dos processos de coaching que conduzo, tenho compartilhado este texto com os coachees. Pelos comentários que tenho recebido, eles dizem que o mesmo gera insights importantes para a postura deles como líderes. Outros relatam haverem mudado algumas atitudes na carreira e na vida. Creio, assim, valer a pena compartilhá-lo com uma audiência mais ampla.

21/02 teria sido o aniversário do escritor americano David Foster Wallace (DFW) e ele teria feito 54 anos, caso estivesse vivo. No primeiro dia deste mês foi também o aniversário de 20 anos da publicação de um trabalho que muitos consideram ter mudado as regras – caso elas realmente existam – da ficção: Graça Infinita, ou Infinit Jest, publicado em 1996 nos EUA. DFW é considerado um dos autores mais influentes de sua geração, na medida em que estabeleceu uma conexão direta com o consciente coletivo dela, mesmo sendo considerado um autor difícil, experimental e complexo. Ele permaneceu praticamente desconhecido pelo leitor brasileiro até 2008 quando, como acontece com outros artistas, a notícia da sua morte mudou um pouco a situação.

Aqui no Brasil, depois de, em 2005, lançar o livro de contos Breves entrevistas com homens hediondos e de, em 2012, lançar a antologia de ensaios Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, a Companhia das Letras lançou Graça Infinita em 2014, com tradução de Caetano Galindo, que também havia feito a tradução da edição mais recente de Ulysses, de James Joyce. Graça Infinita poderia ser visto como o Ulysses da Geração X.

Com mais de 1100 páginas, Graça Infinita é vista como uma leitura difícil. Pelo que vi folheando-o e em diversas resenhas e comentários, o livro apresenta um número absurdo de personagens, de alguma maneira conectados com o destino de uma família e o seu filho mais jovem. DFW nos lança num mundo semi-distópico sem exatamente entendermos a origem disso ou o que está acontecendo, pula entre perspectivas e locais e ri diante de qualquer continuidade estilística. Traz descrições minuciosas com diálogos que parecem roteiros de filmes, listas, trechos escritos em fluxo de consciência, arquivos de cartas e muita informação parecida com a de manuais e relatórios. E, além disso tudo, um monte de notas, algumas gigantescas. Encontrei diversos grupos de leitura em redes sociais que coletivamente enfrentaram ou enfrentam o desafio.

A antologia Ficando Longe… reúne alguns dos melhores textos de não ficção do autor. Dentre eles, está o texto Isto é água, no qual DFW inicia com a premissa simples de que muito provavelmente cada experiência que ele ou nós tivemos caracteriza-se por acharmos que somos o centro do universo ou as estrelas de nossos filmes. Se é assim, é fácil interpretar nosso tédio e aborrecimentos diários quase como insultos pessoais. Realmente, se pararmos para refletir, no dia a dia tendemos muitas vezes a colocar essa lente de que “o inferno são os outros”, como bem disse o existencialista Jean-Paul Sartre. DFW chama estas certezas automáticas que frequentemente exibimos de nossa “configuração padrão natural”. Uma alternativa proposta por ele é fazer uma escolha consciente sobre como perceber esses momentos da vida em sociedade. Se formos capazes de manter na mente a ideia de que talvez, apenas talvez, não sejamos a estrela de nosso próprio filme, poderemos mudar nossa perspectiva para um ponto em que os aborrecimentos diários não parecem tão ruins assim, afinal.

Embora para outras situações mais sérias, diferentes daquelas inconveniências comuns que Wallace exemplifica, a proposta de encararmos o outro com empatia possa parecer uma auto-ilusão, cabe-nos perguntar: se forçarmo-nos a acreditar no contrário da crença profunda de que somos o centro absoluto, isso ainda poderia ser considerada uma resposta genuína ou apropriada? DFW certamente pensou nisso. Não creio que ele iria querer que fantasiássemos que não há pessoas más que fazem coisas ruins, mesmo que insignificantes ou mundanas. Em vez disso, acho que Wallace intencionalmente deixou um vazio em seu argumento, esperando que um ouvinte cuidadoso, e leitor mais tarde, o encontrasse. O que pode corroborar essa tese são afirmações do próprio autor em diversas entrevistas que vi e li dele. Numa delas (1), ele diz que gostava de usar cortes abruptos entre cenas, de modo que alguns dos arranjos na narrativa tivessem que ser feitos pelo leitor; ou ainda interromper o fluxo com digressões e interpolações para que o leitor tivesse que fazer o trabalho de ligar umas às outras e à narrativa. Além disso, ao não explicitar partes dos seus argumentos, poderíamos até inferir que Wallace também estaria prestando, no seu discurso, um tributo à tradição filosófica do Kenyon College.

De qualquer modo, ao invés de querer nos convencer a pensar que tudo está sempre muito bem, Wallace pede-nos que consideremos os pontos baixos da vida e percebamos que, mesmo se somos confrontados com experiências verdadeiramente negativas, ainda temos uma escolha; é apenas um tipo diferente de escolha.

Provavelmente este tipo de escolha não funcione da mesma forma quando aplicamos esta postura a desafios existenciais e, por extensão, a falhas que tenhamos cometido. Como Wallace afirma, todo mundo adora e todo mundo falha. É sempre difícil contextualizar determinados erros; não podemos simplesmente explicá-los ou nos iludirmos pensando que está tudo bem. A vida é cheia de banalidade e repetição constrangedora, mas também é cheia de incapacidades pessoais que podem parecer ameaçadoras: medos básicos, como o de não parecer competente, para ficar em um exemplo, talvez frequente no mundo corporativo, mas não só nele. Como lidamos com isso?

Antecipando essa objeção, Wallace espera que seus ouvintes percebam que há mais tipos de pensamento do que nossa inconsciente configuração padrão natural e nossas auto-ilusões conscientes (?). O que ele não mencionou, mas o que ele parece querer fazer-nos compreender é que a verdadeira maneira de superar não apenas os aborrecimentos da vida, mas também os desesperos que parecem revirar o nosso estômago, é conscientemente escolher ser honesto consigo mesmo – profundamente honesto – sobre o fato de que ninguém é especial. Ninguém é a estrela ou sequer um figurante no filme de ninguém; não há nenhum filme.

Isso não significa que é preciso cair em um estado niilista de nulidade amoral e insensível. Em vez disso, isso nos permite a liberdade de ter o que Nietzsche propôs em Além do Bem e do Mal, onde ele desejava ordenar os filósofos de acordo com seus risos, até aqueles que seriam capazes da “gargalhada de ouro”, como a dos deuses: a ironia necessária para lidar com o fato de que o baralho é embaralhado aleatoriamente, nós morreremos e tudo bem. Quanto mais está seguro de si, diz ainda Nietzsche em Humano Demasiado Humano, mais o homem desaprende a gargalhada, que é necessária para sair da verdade séria, da crença cega na razão e da positividade da existência. Em outras palavras, Wallace também nos convida a rir de nós mesmos, algo que soa a mais um clichê, mas que também esconde uma importância vital, como a das historinhas que ele conta no discurso.

Obviamente, não temos que fingir que não existem coisas ruins na vida. Podemos e devemos reconhecê-las, enfrentá-las e deixá-las para trás. Na próxima ida ao supermercado, no próximo fracasso profissional, na perda de um ente querido. Wallace quer que nós capturemos o momento que sentimos aquela pontada de frustração – a sensação física de que o universo veio nos pegar – e tomemos a decisão consciente de aceitar o que é. Como Wallace diz, “a vida antes da morte.”

Este reconhecimento é incrivelmente simples e incrivelmente difícil. Implica nada mais do que “atenção, consciência, disciplina e esforço”. Somente isso. No entanto, com ele vem o tipo mais importante de liberdade: ser verdadeiramente capaz de preocupar-se com outras pessoas e sacrificar-se por elas repetidamente, em meio às coisas pequenas e sem graça de todos os dias.

Wallace queria que seus ouvintes entendessem que, se pudermos, momento a momento, voltar atrás e re-abordar a vida com honestidade reflexiva e ironia, descobriremos que a nossa própria insignificância individual nos permitirá fundamentalmente e pessoalmente conduzir nossas vidas de maneira significativa.

E ele começa por lembrar que isto é água. Isto é água.

Vale a pena ver uma versão reduzida do texto neste vídeo com a narração do próprio David Foster Wallace, com legendas em Português.