O moto contínuo da Inovação
Artigo publicado no Estadão destaca passagens do livro “O Profeta da Inovação”, sobre a vida de Schumpeter, autor da ideia de “destruição criativa” e para quem “se a inovação e o talento são o motor da história, como poderia ela estar sujeita a qualquer determinismo”?
A premiada biografia de Joseph Alois Schumpeter (JAS) O Profeta da Inovação: Joseph Schumpeter e a Destruição Criativa (Record) tem 768 páginas e seu autor, Thomas McCraw, é professor emérito da escola de negócios de Harvard. Essa é a quarta biografia de JAS, mas talvez a primeira de alguém tão próximo à universidade onde ele passou os últimos 18 anos de sua vida.
McGraw, na verdade, escreve vários livros em um só: uma biografia repleta de material original, uma resenha ordenada dos escritos de JAS, uma história econômica do período em que viveu o biografado (1883-1950) e 250 páginas de notas e comentários bibliográficos, um tesouro para bibliófilos e curiosos.
Ao terminar o livro, além da sensação de ter aprendido tudo sobre o personagem e seu tempo, o leitor descobrirá que esse tempo ainda é o nosso, idêntico no que mais importa: a permanente transitoriedade. Por sua própria natureza, o capitalismo jamais será “maduro” ou “estável”, e esse espírito é bem capturado pelo verso de Keats: “O alvoroço é nossa única música”, e pela ideia de destruição criativa.
Curioso que essa expressão tenha sido usada pela primeira vez apenas em 1942, quando o conceito já estava enunciado por completo na sua Teoria do Desenvolvimento Econômico, em 1909, uma espécie de estreia de um novo astro, do alto de seus 26 anos e compondo no isolamento da Universidade de Czernowitz (hoje Chernivtsi, na Ucrânia). A essência de sua visão sobre o capitalismo já estava desenhada nessa obra de juventude, e não seria um exagero afirmar que seu trabalho posterior não foi muito mais que reescrever e enriquecer esses mesmos conceitos.
A precocidade é de todo comum em um intelecto absolutamente incomum, e sua formação oferece apenas uma parte da explicação. JAS nasceu em Triesch, uma pequena cidade da atual República Checa, onde a família estava estabelecida havia 300 anos. Com a morte do pai, sua mãe, Johana, mudou-se com o pequeno Jozsi para Graz, cidade maior e mais cheia de oportunidades, onde arrumou um novo casamento, que os levou para Viena. Tudo parecia planejado para que assim fosse. Instalado perto da Ringstrasse, Jozsi estudou no Teresianum e em seguida na Universidade de Viena, a sequência perfeita para um aspirante a um bom posto na burocracia do Império Austro-Húngaro. Junto a professores como Bohm-Bawerk e colegas como Hilferding e Von Mises, e numa atmosfera talvez sem igual em efervescência cultural, o talentoso e carismático Jozsi superou as mais otimistas expectativas de Johana. Sua fulgurante carreira acadêmica o levou à Inglaterra, ao Cairo, a Czernowitz, de volta a Graz e em 1919, aos 36 anos, ao cargo de ministro da Fazenda num gabinete socialista em companhia de ex-colegas de universidade. Foi o apogeu dessa primeira fase de sua vida.
JAS era ambicioso, eis sua mais célebre bravata: queria ser o maior economista, cavaleiro e amante do mundo, e as coisas não iam bem com os cavalos, segundo reclamava. Seu sucesso com as mulheres, um tema sobre o qual McCraw é econômico (o leitor não encontrará nada comparável à lista comentada de parceiros sexuais de Keynes na biografia de Donald Moogridge), e a julgar pelas fotos, apenas reforça a sensação de que sua capacidade de cativar devia ser imensa.
Foram poucos meses de vida pública, nos quais seu otimismo incondicional e sua inabilidade com a imprensa arruinaram sua carreira pública. As novas fronteiras definidas para a Europa Central após os tratados de paz, retalhando o velho império, decretaram, segundo JAS, “uma sentença de morte” para a Áustria. A nova república viveu uma hiperinflação enquanto JAS foi trabalhar em um banco, no qual fez fortuna com a mesma velocidade com que se viu na ruína e carregado de dívidas em 1924. No ano seguinte arquitetou um recomeço ao aceitar uma cátedra na Universidade de Bonn e através de um novo casamento. Tragicamente, porém, sua esposa faleceu quase simultaneamente a Johana, em agosto de 1926. Era o “início tardio de sua vida adulta”, diz McCraw: “Passada a idade do enfant terrible, ele também estava machucado demais para a vida descuidada de solteirão bon vivant”.
JAS planejou seu exílio tão bem quanto Johana ao mudar-se para Graz. A tradução para o inglês de sua Teoria do Desenvolvimento Econômico teve todos seus detalhes confiados ao venerável Frank Taussig, o grande economista de Harvard, com vistas a melhor estabelecer a reputação de maior economista de seu tempo. A tradução, na verdade, se tornou uma oportunidade de condensar e amadurecer sua obra de juventude. Com 235 páginas, metade do tamanho da edição alemã, a edição inglesa veio a público em 1934, com grande impacto.
O livro trazia ao menos três ideias extraordinárias: a definição a partir de inúmeros exemplos de “inovação”, ou de “resposta criativa” na transformação de conhecimento científico em tecnologia de produção, ou na criação de instituições conducentes ao progresso; o destaque para o papel dos indivíduos geniais, os “Carusos”, que fazem acontecer as empresas que materializam as inovações, os “empreendedores schumpeterianos”, como viriam a ser chamados; e a criação de crédito como o papel chave a ser desempenhado pelo sistema financeiro, “o quartel-general do sistema capitalista”, onde se cria “dinheiro imaginário” (money of the mind) não como poupança (riqueza acumulada ou abstinência de consumir), mas a partir de riqueza futura, existente apenas na mente de quem investe.
Eram mensagens fortíssimas, e positivas, mas talvez deslocadas em um mundo em depressão e repleto de dúvidas sobre a viabilidade do capitalismo. JAS tinha sido excessivamente escrupuloso em não contaminar seu trabalho “científico” sobre as grandes questões de seu tempo com o que tratava em sua “prostituição” como palestrante e debatedor. Diante da Depressão, e agora na posição de estrela de Harvard, ele se preparou para uma resposta vitoriosa que, todavia, terminou sendo uma de suas grandes decepções.
No meio de caminho da preparação do que pretendia ser sua obra prima, o Ciclo dos Negócios, finalmente publicada em 1939, veio a público a Teoria Geral de Keynes em 1936, que tomou de assalto o mundo acadêmico. O Ciclo dos Negócios buscava, através da história, “uma ciência econômica mais exata”, separando a análise científica das flutuações econômicas de qualquer espécie de recomendação sistemática de políticas anticíclicas, exatamente o oposto do que Keynes buscava em seu livro. O livro de JAS não foi propriamente um sucesso de crítica, o que o deixou “profundamente contrariado”.
Em 1936 JAS já havia feito uma resenha negativa para a Teoria Geral, na qual repisava o “conflito de interesse” entre a teoria pura e o desejo do autor em patrocinar determinada política, o fato de que não era de jeito nenhum uma teoria “geral”, mas uma compilação de conselhos, provavelmente bons, para a Inglaterra em depressão e, por último, criticava fortemente a ideia da “conveniência” do gasto público “improdutivo” como forma de sustentar sistematicamente o pleno emprego. Se assim fosse, segundo afirmou, “Luís XV teria sido um monarca dos mais iluminados”, e o pleno emprego e a prosperidade teriam resultado das fortunas desperdiçadas com Madame de Pompadour e Madame du Barry, quando na verdade, o que se viu foi “miséria, vergonha, e ao final de tudo, um banho de sangue”.
Mais adiante, em 1947, num discurso presidencial da Associação Americana de Economia, ao tratar de economia e ideologia, e depois de falar de Marx o que habitualmente se fala dele nesse tópico, JAS surpreendeu a audiência ao atacar a “visão” de Keynes sobre o capitalismo, segundo a qual o sistema está condenado à estagnação que, todavia, se resolveria pelo ativismo esclarecido de burocratas iluminados. No ano anterior, no longo obituário que escreveu sobre Keynes, já havia tocado nesse ponto: “Na década de 1930, os escritos de Keynes pareciam encorajar qualquer política, por mais ridícula, que elevasse os gastos públicos – uma ideia extremamente perigosa de semear nas mentes dos políticos”. E mais: “Depois de Marx, cultivou o terreno intelectual em que floresceram atitudes anticapitalistas”, o que, com efeito, pode ser atestado por alguns dos que intitulam a si mesmos keynesianos no Brasil de hoje.
É curioso que o livro mais bem-sucedido de JAS, Capitalismo, Socialismo e Democracia, de 1942, tenha sido uma liberalidade relativamente à fronteira entre a “economia exata” e o posicionamento em debates sobre políticas públicas. Talvez tenha sido o fracasso de Ciclo dos Negócios que o fez dar voz à persona que se apresentava como um showman em suas palestras. Em seguida, fingia se surpreender com o extraordinário sucesso de seu livro “popular” e suas teses sobre a vitalidade da “economia mista”, ou das variadas formas pelas quais o capitalismo se reinventava pelo mundo.
O fato é que esse livro, e outros textos da ocasião, o fizeram revisitar o velho tema da inovação e seus “Carusos”, que designou como “o princípio da indeterminação”. Jamais seria possível alcançar uma “economia exata”, diria ele, em um sistema que dependia de forma tão absoluta de indivíduos excepcionais. Se a inovação e o talento empreendedor eram o motor da história, como essa poderia estar sujeita a qualquer espécie de determinismo? O livre-arbítrio de homens especiais no comando de seu próprio destino – como ocorre com os personagens de Shakespeare – os leva às mais distantes e inesperadas regiões, seus destinos colidem, amiúde o caos se estabelece, os desfechos variam e o mundo se reinventa, esse o espírito do capitalismo. A recusa a qualquer determinismo era a grande lição de um fenomenal economista que adotou durante toda a sua vida a história como método e primazia.
(Artigo de Gustavo H.B. Franco, professor da Puc-Rio, sócio fundador da Rio Bravo Investimentos, ex-presidente do Banco Central. Publicado no Caderno Aliás, do Estadão de 23/09/2012).